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Takeshi Misumi

São Paulo / SP - Brasil
77 anos, Administrador de Empresas e Contador

IMAGENS QUE NÃO SE APAGAM


Escrevi este relato em homenagem ao meu pai Tadahide Misumi, após quatro meses do seu falecimento. Agora, por ocasião das comemorações do centenário da imigração japonesa, divulgo neste site para homenagear todos os heróicos imigrantes, consciente de que o sofrimento deles, que no caso do meu pai persistiu até os seus últimos dias conforme descrito a seguir, nunca poderá ser esquecido. A eles a nossa eterna gratidão.
ÓDIO
Parecem fotos. Melhor, assemelham-se às imagens de um filme. Não tem como esquecer a seqüência.
Algum dia, no quarto 216 do hospital. Di-tian – meu pai Tadahide - saindo do banheiro. Passos lentos, as duas mãos segurando o andador. O corpo meio inclinado, apoiando-se sobre o andador. Ele caminhando em direção à cama.
Olho para o seu rosto. O olhar profundo dele denota ódio. Raiva de algo. O olhar era penetrante. Carregado. Não consigo falar nada. Apenas observo o Di-tian andando lentamente. Posicionando o andador à sua frente, e dando os passos trôpegos.
Vai ser difícil esquecer daquele olhar. Difícil imaginar o que ele pensava naquele momento. Mas, deveria ser algo relacionado à sua doença. Talvez estivesse com raiva das doenças que insistiam em não ceder, apesar do tratamento rigoroso a que ele se propôs submeter.
DERROTA
Café da manhã. A copeira tinha trazido para o quarto o desjejum do Di-tian. Mingau. Segundo ele, mingau com gosto horrível. Mas, era a alimentação recomendada pelos médicos e pela fonoaudióloga, para reforçar a alimentação enteral – sonda no nariz. Saí para ir até a toalete do corredor. Ficou no quarto a minha irmã Hideko para ajudar o Di-tian na tentativa de comer um pouco daquele mingau.
Quando voltei para o quarto, vi Di-tian sentado na cadeira, encostado à mesa. Sobre a mesa, Hideko ajeitou a bandeijinha do mingau. Ela me disse que Di-tian resolvera comer sozinho, sem a ajuda de ninguém. Nas outras vezes alguém sempre punha a comida na boca dele. Sempre na cama, semi-deitado, com o encosto inclinado.
Comentei com a Hideko que isso era ótimo. Di-tian queria provar a todos que conseguiria comer sozinho. Sem a ajuda de ninguém. Que ele era forte o suficiente para se alimentar sem auxílio. Todos comentavam que era importante que ele se alimentasse pela boca. Era para que ele se fortalecesse e pudesse se livrar da sonda que tanto o incomodava.
Deu umas três ou quatro colheradas. Tentou mais uma. Tentou novamente. Não conseguiu. Abaixou a cabeça sobre as mãos apoiadas na mesa. Ficou assim durante alguns segundos, talvez minutos.
Percebi uma sensação de derrota. Nunca tinha visto isto no Di-tian.
Ele sempre foi forte. Superou muitas dificuldades, venceu muitas doenças. Não era de se entregar. Dói muito lembrar-me daquela imagem de derrota.
ABANDONO
Centro de Tratamento Intensivo, leito 19. Ele deitado, com os braços amarrados na cama. A enfermeira já tinha me “expulsado”. Já havia expirado o horário de vista. Diferentemente de outras, aquela enfermeira não era tolerante. Não me permitiu permanecer ao lado do Di-tian além do horário estabelecido.
Mas eu tinha voltado ao leito do Di-tian para entregar à enfermeira o hidratante que outro enfermeiro tinha pedido. Era o Fisiogel que ele tanto usou para amenizar as terríveis coceiras que sentia pelo corpo todo. Alergia que incomodou o Di-tian durante décadas.
Após entregar o remédio para a enfermeira intolerante, saí apressado do quarto. Antes de passar da porta virei-me para trás e observei Di-tian olhando em minha direção. Um olhar de interrogação. Um olhar de criança inocente sentindo-se abandonada. Um olhar de quem sente a despedida de alguém.
Tive vontade de voltar para perto dele. Ficar perto dele, para que ele não tivesse essa sensação de abandono.
Uma imagem que dificilmente esquecerei!

20050330


Enviada em: 01/07/2008 | Última modificação: 12/02/2009
 
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Comentários

  1. Cristiane Y Nakata (ex-escoteira falcão) @ 17 Jul, 2008 : 20:00
    Oi Takeshi! É a Cristiane... lembra de mim? Admiro a educação que dá para sua família... Abraços! Cris.

  2. Denise Misumi @ 30 Jul, 2008 : 00:42
    Tio, muito lindas as suas histórias! Nao consegui conter as lágrimas lendo "Conversando através do coração". Ainda me emociono relendo-a. Já pensou em fazer um livro contando essas e mais histórias?? Abraços, Denise

  3. Takeshi Misumi @ 3 Ago, 2008 : 18:08
    Denise, obrigadão pelos comentários. Fiquei muito satisfeito e feliz em saber que você se sensibilizou com os meus relatos. Aliás, o meu propósito em me expor neste espaço aberto pela Editora Abril foi tão-somente de tentar sensibilizar os descendentes, principalmente os jovens como você, sobre o sofrimento que os imigrantes passaram. Muito do que nós usufruimos hoje foi graças a eles. Todo o passado vivido e sofrido por eles não pode cair no esquecimento. Cumpre a cada um de nós desempenhar o papel que nos cabe. Quem, no presente, souber reconhecer o passado, saberá construir um futuro melhor. Quanto ao livro, até pensei no assunto. Mas, é um projeto muito grandioso para mim. Não sei se teria condições de realizar este sonho. Acredito que essa tarefa seria mais fácil, se for possível contar com a ajuda de outras pessoas. Abração.

  4. Julio Misumi @ 11 Set, 2008 : 19:11
    Oi Takeshi. Li o relato da mesa, em cima dela na chacara. Ao ler aqui, me emociona saber que ela passou por muitos momentos com a familia, bem antes de nascermos. Quantas conversas e refeições foram feitas nela, por nossos avós e seus filhos (nosso pais)? Quanta utilidade para varias gerações? Ela faz parte da familia e suas cicatrizes foram feitas por alguém da familia em algum momento. Representa bem o passado sofrido e a determinação que nossos antepassados tiveram, para que as futuras gerações (nós e nossos filhos) pudessemos ter uma vida melhor que eles. Obrigado pelo que voce faz pela familia e no que eu puder ajudar, conte comigo. Um abraço

  5. Filhos da Satiko @ 14 Dez, 2008 : 23:47
    Oi Tio, Que legal...Sim, ela tinha olhos grandes e um sorriso radiante, característica marcante dela...Ela era linda e foi uma mãe perfeita pra nós. Agradecemos a mensagem e tudo que vc e a tia fizeram por ela e por nós. Um beijão. Duda, Thie, Fabio e Livia

  6. mario katsuhiko kimura @ 14 Fev, 2009 : 15:48
    Sr. Takeshi, Sou leitor das historias contadas neste Site e agora sou também seu fã. O Sr. deveria ser contador de historia e não contador/administrador. A sua maneira de escrever, contar historia da família através da historia da mesa é de altíssima criatividade, mostrando ser uma pessoa erudita, sábia e inteligente. Acredito ter herdado os valores do seu falecido avô. Como disse um dos entes da família no comentário, o senhor deveria escrever livros. Parabéns e continue a escrever para todos nós. Grande abraço

  7. Julio Misumi @ 31 Mar, 2009 : 13:10
    Oi Takeshi. Eu acho que fui ao casamento da Tia Katsuko e poucas vezes a vi depois disso. Me lembro que durante muitos tempo meus foram iam a Jales visita-la. E tenho certeza que ela desafiou e venceu a morte por dezessete anos, pois meus pais diziam que ela os reconhecia a cada visita. Obrigado sempre e um abraço.

  8. Silvio Sano @ 1 Abr, 2009 : 02:38
    Prezado Takeshi, Depois de muito tempo sem abrir este site para ler as histórias dos colegas, "hisashiburini", fi-lo, tarde da noite de ontem, atraído por um leitor seu fora da família (o Mário Kimura, aí, logo acima). Daí, comecei pela leitura da Tia Katsuko. Contente pelo que fui contemplado, prossegui com as demais, debaixo para cima, porque sabia que a seqüência seria essa. A forma como as narra é muito interessante porque torna universais mesmo os seus mais íntimos personagens. Daí porque "tocou" ao Mário, a mim e, com certeza, a todos os que as lerem (não apenas parentes ou pessoas de seu círculo). Em alguns momentos também me emocionei e, por isso achei que não seria o momento adequado para deixar aqui o meu comentário. Conclui que seria injusto com vc, e que deveria fazê-lo sem que me deixasse levar pela emoção. Algo verdadeiramente sincero. Ou seja, para que o tamanho da satisfação que eu demonstrasse não fosse considerada exagerada devido a isso. Assim, aguardando, até este momento, de "cabeça fria", mas garantindo que a emoção pela leitura ainda permanece viva em mim, cumprimento-o principalmente pela sensibilidade e percepção em relação a outrem, que o levaram também a "conversar através do coração", e de forma a "tocar o fundo da alma" de seus leitores. Parabéns e um grande abraço.

  9. Silvio Sano @ 7 Abr, 2009 : 00:37
    Prezado Takeshi, O jeito que vc exagerou nos elogios, na verdade, só veio comprovar para mim, o quão criativo é para escrever textos (rsrs). Mas, agradeço pela parte não exagerada, que sei, foi sincera. E não apenas o parabenizo por suas virtudes, como, pela citação ao Mário Tomita, acabei ligando para ele, a fim de saber um pouco mais sobre a sua pessoa, mas sugerindo-lhe também para que publique algumas coisas suas no jornal. Ele concordou afirmando que, sendo pra vc, um dos primeiros assinantes dele, o faria com imenso prazer. Que tal atendê-lo então com um artigo, ou uma crônica, esporadicamente... pra começar? Não apenas ele, mas, nós também, leitores, ficaremos muito felizes. Yoroshikune. Abs.

  10. Edson Correa Porto @ 9 Abr, 2009 : 00:36
    E eu que pensei que vc só escrevesse relatórios; parabéns pela sensibilidade; vc sempre surpreendendo. Abraço

  11. Mario Katsuhiko Kimura @ 17 Jun, 2009 : 23:43
    Sr. Takeshi, Só o senhor consegue prestar homenagem aos idosos na forma acima transcrita. Isso mostra a sua grandeza, de ser uma pessoa culta, iluminada. Obrigado por proporcionar a este leitor o prazer de ler, sentir e também emocionar. Grande abraço

  12. Takeshi Misumi @ 16 Mar, 2010 : 07:51
    Teste

  13. Silvio Sano @ 16 Mar, 2010 : 09:34
    Olá, Takeshi-san. Bondade sua. Eu é que fiquei muito feliz com a sua presença e, bem como com a de sua esposa. E ainda bem que o Mário estava lá, né. Bom, aproveito para te solicitar para que veja como será o próximo livro. Link em http://www.youtube.com/watch?v=OfULKT3Beqk A propósito, conhece o Nikkeypedia? Lá vc tb poderá colocar a sua, de seus pais, avós e amigos, histórias. A minha está em http://www.nikkeypedia.org.br/index.php/Silvio_Sano

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