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Veja, 21/06/1978

Nossos olhos puxados

LUIZ HENRIQUE FRUET

A saga dos imigrantes japoneses que vieram para fazer fortuna e acabaram se transformando em 750 000 brasileiros como os outros

Museu Histórico da Imigração Japonesa
O Kasato Maru, primeiro navio de imigrantes japoneses, chegou a Santos em 1908

Eram apenas 165 famílias japonesas com o sonho de fazer fortuna nas terras do Novo Mundo e de poder retomar em breve a sua terra. Mas, dos 718 imigrantes que há setenta anos - dia 18 de junho de 1908 chegaram ao Brasil a bordo do "Kasato Maru", poucos voltaram. E do sonho imediato de riqueza restou algo bem mais sólido. Nesses setenta anos de imigração agora comemorados - inclusive com a presença do príncipe herdeiro do Japão, Akihito -, outros 250 000 japoneses desembarcaram no Brasil. Dificilmente, é certo, se poderá estabelecer o que esse tempo representou para eles. Sabe-se, porém, que os que mais lucraram foram os brasileiros. Principalmente porque os viajantes vindos do outro lado do mundo não se contentaram com o papel a eles destinado.

Inicialmente, de fato, os japoneses deveriam servir como mão-de-obra para a grande - e única - riqueza econômica brasileira da época: os cafezais. Os tempos passaram, a economia do país encontrou outras riquezas e talvez não haja um só japonês lavrando a terra para os herdeiros dos barões do café. As 750 000 pessoas que formam a colônia e sua descendência - dos nisseis (a segunda geração) aos gosseis – espalharam-se por todos os ramos de atividade, em vários pontos do país, notadamente São Paulo e Paraná. E se integraram a tal ponto na vida brasileira que já ofereceram ao país dois ministros de Estado: o meteórico Fábio Yassuda, responsável pela pasta da Indústria e do Comércio, e, atualmente, Shigeaki Ueki, ministro das Minas e Energia. Só no Estado de São Paulo, esse contingente alcança 550 000 pessoas – 2,5% da população; uma pequena casa bancária fundada em Mirandópolis, em 1937, pelos imigrantes tornou-se hoje o décimo banco do país – o América do Sul; os agricultores nipônicos, principalmente através de cooperativas, produzem 8,8% do café brasileiro, 71 % da batata, 60% da soja, 58% do tomate, metade das verduras, 44% dos ovos, 90% dos morangos, 94% do chá consumidos no país.

No Pará, introduziram a pimenta-do-reino. Em Pernambuco e no resto do nordeste, o hábito de comer verduras. Em São Paulo e no Paraná, desbravaram matas, fundaram cidades. Trouxeram novos hábitos esportivos - e, se o beisebol continua restrito aos núcleos japoneses, o caratê e o judô espalham-se hoje por mais de 1 000 clubes e academias apenas em São Paulo, com cerca de 200 000 praticantes no país. Suas crenças igualmente vão conquistando mais e mais adeptos. Há no Brasil cerca de 300 000 budistas - entre eles o monge Ricardo Mário Gonçalves, um brasileiro livre-docente de História Oriental na Universidade de São Paulo -, 800 000 praticantes da Seicho-No-Iê, 300 000 da Perfeita Liberdade e mais de 100 000 da seita Messiânica. Há descendentes de japoneses na política, na economia, no comércio, na agricultura, nas profissões liberais - enfim, 750 000 brasileiros de "olhos puxados". As peculiaridades fisionômicas, com efeito, são hoje, na maioria esmagadora dos imigrantes japoneses e de seus descendentes, o fator maior de diferenciação com os ditos brasileiros de resto, em grande parte descendentes de imigrantes europeus e dos escravos africanos.

Mas as dificuldades foram muitas. Além da naturalmente penosa adaptação numa terra estranha, de costumes, língua e hábitos totalmente diversos dos orientais, juntar-se-ia a rápida desilusão com o "eldorado" brasileiro. Passados os primeiros tempos dos dois anos em que, pelo contrato de emigração, deveriam trabalhar nos cafezais paulistas, os japoneses - como já havia ocorrido antes com os europeus que os haviam precedido na substituição da mão-de-obra escrava recém-liberta - viam que jamais conseguiriam juntar dinheiro. Reforçava esse sentimento de desilusão o fato de que quase metade dos colonos nunca havia antes pegado numa enxada: era gente das mais variadas profissões que, movida pelo espírito da aventura, conseguia um atestado falso de lavrador e ia tentar vida nova fora do já àquela altura superpovoado Japão. Assim, logo que terminava o contrato, muitos deles deixavam as fazendas em direção às cidades.

Foi o que aconteceu com a família de Shiguemassa Hashiguchi, um mestre-escola de vinte anos, que chegou com a mulher grávida e um filho de 5 anos no "Kasato Maru". Quatro meses após a chegada, nascia Rosa, a primeira nissei brasileira. Shiguemassa morreria dois anos depois, vítima da malária, e Rosa começaria aí a sua integração - a mãe, sem recursos, era obrigada a empregar-se como doméstica para ganhar o sustento e ao mesmo tempo aprender a falar português. Às vésperas de completar 70 anos, viúva, com três filhos e três netos, dona Rosa considera-se totalmente integrada no Brasil "e só poderia ser assim, pois eu sou brasileira, ora".

Como os Hashiguchi, Hajime Nagata, hoje com 90 anos, também preferiu a vida da cidade. O mesmo espírito aventureiro que o fizera fugir de casa, aos 16 anos, para lutar contra os russos, levou-o a entrar como clandestino rio "Kasato Maru". Descoberto durante a viagem, acabou sendo aceito como imigrante. Depois de um ano num cafezal, Nagata foi para Santos trabalhar como estivador. Suas andanças o levariam ainda até o Rio Grande do Sul, onde trabalharia em profissões tão distintas como pintor de letreiros e administrador de fazendas. Foi empregado dos fazendeiros-políticos Assis Brasil, Borges de Medeiros e Manuel Vargas (pai de Getúlio), voltou para São Paulo e fixou-se em Jacareí, como dono de uma lavanderia. Viúvo há sete anos, mora hoje em Goiânia, em companhia de uma filha, netos e o bisneto Leandro. A medida de sua integração Nagata definiu com esta explicação a Ângela Ziroldo, de VEJA: "Meu gênio não dá para trabalhar com japoneses. Eles parecem um bando de ovelhas, ficam todos amontoados num canto, ninguém tem coragem de sair do lugar". Um evidente exagero. Afinal, seus patrícios vieram de um país que fica a quase 30 000 quilômetros de distância. E no Brasil nada menos que 137 000 japoneses e descendentes acabaram se fixando bem longe do ponto de chegada dos navios que traziam os pioneiros: no norte paranaense, onde sua presença é hoje consideravelmente notada em 56 cidades.


Iugo Koyama
Jardim oriental no interior paulista.

Em Bandeirantes, por exemplo, vive ainda Massayo Ussui, viúva de 88 anos. Aos 18, recém-casada, Massayo embarcou com o marido Kaito no "Kasato Maru". Três meses após a chegada, porém, o casal abandonava a lavoura de café e também vinha para São Paulo. Após variados e mal-remunerados empregos, os Ussui resolveram rumar para o norte paranaense, que ajudariam a desbravar. Lá nasceriam os catorze filhos do casal - sete dos quais acabariam morrendo vítimas de doenças tropicais. Hoje, com oito netos e sete bisnetos, Massayo passa os dias tricotando e cuidando de um pequeno jardim - e rezando devoções para Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

A maior parte das levas de imigrantes que, com breves interrupções, se sucediam anualmente acabaria, porém, tomando outros caminhos. Passado o período obrigatório nos cafezais, um número considerável terminaria se fixando em terras próximas - a crise do café obrigava os grandes latifundiários a irem arrendando ou loteando parte de suas terras -, e aos poucos os japoneses iam se transformando em pequenos proprietários e diversificando a lavoura do Estado. Plantavam arroz, batata, banana. Outros, aproveitando as facilidades oferecidas pelo governo para a compra de terras ao longo da Estrada de Ferro Noroeste, deslocavam-se em direção ao Mato Grosso, quase alcançando a fronteira com a Bolívia. Com o tempo, ocupariam também a alta Sorocabana e a alta Paulista. Naturalmente, iam formando núcleos próprios, onde falavam o japonês e viviam como na terra natal, cultivando suas tradições e educando os filhos para a ainda sonhada volta ao Japão.

Essa multiplicação de comunidades com hábitos próprios - evidentemente bem diversos dos nacionais - acabaria ocasionando o surgimento de resistências entre os brasileiros, consubstanciadas na teoria de que os japoneses não conseguiam assimilar os costumes ocidentais. "Nada mais falso que isso", reage o professor Teiiti Suzuki, 66 anos, diretor do Centro de Estudos Japoneses anexo à Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. "Essa é uma idéia que veio de fora, dos Estados Unidos, por exemplo, onde os imigrantes, por serem discriminados, naturalmente não poderiam assimilar-se", explica Suzuki - ele próprio um imigrante, chegado em 1928 e hoje "inteiramente integrado". No Brasil, segundo Suzuki, nunca houve propriamente discriminação, embora um período de exacerbado nacionalismo durante o Estado Novo tenha contribuído para dificultar a integração dos imigrantes japoneses. Com efeito, a política nacionalizante de Getúlio Vargas, primeiro proibindo que fosse ministrado o ensino em língua estrangeira a menores de 10 a 14 anos, e posteriormente restringindo a publicação de jornais e revistas em língua estrangeira no país, acabaria provocando, notadamente entre os imigrantes japoneses, o que o sociólogo Hiroshi Saito, 59 anos, desde os 15 no Brasil, denomina de um "estado de descomunicação". "Embora historicamente acertada", sustenta Saito, "a política nacionalizante deixou o grupo privado dos canais principais de comunicação, já que a maioria não havia ainda adquirido a habilidade em idioma português." Esse estado de descomunicação acabaria coincidindo justamente com o desenrolar da II Guerra Mundial e causaria sérios problemas no seio da comunidade japonesa no Brasil. Fechados em si mesmos, e apoiados na crença da "proteção dos deuses" para o Japão, que até então jamais havia perdido uma guerra, a maior parte da colônia recusava-se a aceitar a evidência da derrota para os aliados. Logo formaram-se duas facções: a dos katchigumis, que sustentavam a tese da vitória japonesa, e a dos makegumis, ou derrotistas.

Os conflitos entre as duas correntes tornaram-se inevitáveis e acabaram desaguando numa série de quase vinte assassínios de makegumis perpetrados por membros da Shindo-Remmei (Liga dos Súditos Fiéis), uma sociedade secreta formada por fanáticos katchigumis. Justamente nos dez anos do pós-guerra acabaria se operando a crise de identidade dos imigrantes. Até a época da guerra, explica Saito, eles se identificavam como autênticos japoneses, convencidos de que um dia voltariam à pátria. Ao absorverem finalmente a derrota, convenciam-se em abdicar definitivamente dessas intenções. Duas pesquisas efetuadas entre a colônia se encarregariam de comprovar numericamente essa reversão de intenções: em 1939, 90% dos imigrantes consultados manifestavam a intenção de retomar ao Japão; já em 1957, 85% pretendiam permanecer definitivamente no Brasil.

BRASILIDADE - Tais intenções acabariam forçosamente por refletir-se na vida da colônia. Já que as famílias aqui ficariam, aqui seus filhos deveriam estudar. Assim, aos exatos 44 nisseis formados até 1945 nas faculdades da USP somavam-se 479 nos dez anos seguintes. E, este ano, segundo levantamento do professor Saito, nada menos que 13% das 30 000 disputadíssimas vagas da USP são ocupadas por descendentes de japoneses. No setor agrícola, cresceram as cooperativas de produção - notadamente a pioneira de Cotia, fundada em 1927 para comercializar a batata produzida pelos japoneses naquele município da Grande São Paulo e que se transformaria, no ano de seu cinqüentenário, em uma das cinqüenta maiores empresas da América Latina, exportanto em 1977 o equivalente a 326,2 milhões de dólares. Sua atuação, com nove cooperativas associadas, abrange setenta municípios em sete Estados brasileiros, e dentre os projetos que desenvolve encontra-se a produção de café e trigo no cerrado de Minas e de diversas lavouras no vale do São Francisco. Seria essa uma prova de integração? "Temos associados de 37 nacionalidades aqui", responde o advogado Gervásio Tadashi Inoue, de 60 anos, há 22 anos na presidência da cooperativa. "Não me arrisco nem em falar em colônia, pois posso até ser demitido." Shiniti Aiba, ao lado de Inoue uma das personalidades de mais prestígio da colônia nipônica, como diretor-vice-presidente e um dos fundadores do Banco América do Sul, concorda integralmente com a necessidade de integração dos japoneses e seus descendentes na vida brasileira. Nascido em 1908 no Japão, ele faz questão de lembrar, porém, que "é preciso manter as características culturais com um constante intercâmbio entre a colônia e o Japão". Mas, de qualquer forma, durante sua estada no Brasil, o príncipe herdeiro Akihito não encontrará apenas o cultivo à tradição. Um exemplo: para o vereador paulistano Yukishigue Tamura, nascido em 1915 no bairro da Liberdade, a tradição não conta muito. Quando menino, trocou a escola japonesa por uma brasileira. Depois converteu-se ao catolicismo, foi coroinha, esteve com um pé no seminário, é casado em segundas núpcias com uma loira descendente de alemães e, como político, conquistou a suprema prova de brasilidade ao ter seu quarto mandato de deputado federal suspenso em 1969, através do AI-5, por defender o mandato do ex-deputado Márcio Moreira Alves.

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